quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Surreal I*

Três mosqueteiros vestidos à caráter diante do portão do cemitério, com espada e tudo. Bem ali na esquina da Rua da Liberdade com a Rua São Paulo, eu vi.

Era fim de tarde, levavam flores a mulher e seu marido, em buquê e em vaso improvisado. Flores muito coloridas, talvez gérberas. Ou cravos-de-defunto.

A mulher desceu as escadas que levam ao cemitério, roubou a espada de um dos mosqueteiros e pôs os três a correr. Eles reclamavam com um português arcaico, impossível de entender, a pronúncia tão diferente... Ela muda.

A mulher e o marido cruzaram o portão, ela na frente, ele atrás, cabisbaixo. Sabiam bem aonde iam, não olharam para os lados, não trocaram uma palavra. Pararam. Invisível, eu observava. E sabia o que aconteceria depois: já era a segunda vez que eles faziam o ritual diante de meus olhos.

O marido jogou as flores sobre o túmulo, pegou o vasilhame antigo de leite, levou-o ao bar e, com um sinal, mandou encher-lhe de pinga. Tomou tudo sozinho, em silêncio, e ficou estirado na terra seca em frente ao bar.

A mulher deitou delicadamente seu buquê sobre a terra que cobria a cova — de quem seria? Fez uma oração em pensamento, virou as costas e partiu. Até onde pude ver, não olhou para trás.

Sozinha caminhei ainda por entre as imponentes estátuas já escurecidas com o limo e poeira que cobrem os esquecidos. A deslumbrante homenagem — esquecida. O único com flores era aquele de terra, que não tinha sequer o nome do falecido. O único com cores e com o frescor das flores recém apanhadas.

Entre anjos e santos, três mulheres em estátua pareciam cair de costas sobre um túmulo, à visão de uma cobra em posição de ataque. No lugar da cruz, apenas uma cobra. Tantos rostos tranqüilos de estátua, só aqueles três demonstravam pavor.

A escuridão da noite avançava, turvava o céu cinzento. De repente, fui tomada pelo medo, procurei desesperadamente pela saída.

Os corredores entre os túmulos pareciam mais estreitos e compridos agora, a terra seca e escorregadia exigia maior cuidado e atenção, o portão tão longe ainda. Não mais olhei para as estátuas, tive medo de agora elas me fitarem.

Eram quase 22h e ainda escurecia. Aliviada, alcancei o portão lateral sem que nada de sobrenatural tivesse me acontecido.

Lá fora, só a ausência de vida era a mesma. As cores da manhã preenchiam os olhos, o cheiro do orvalho evaporando da grama inflava os pulmões.

Já não se viam as paredes do cemitério, quando uma mulher brotou de um buraco no chão. Toda vestida de branco, com olhos que não pareciam ver, e cabelos pretos, lisos e curtos. Caminhava pela rua gramada, até chegar à ladeira de pedra. Entrou, sem bater, em uma casa de madeira desbotada, atravessou a porta de pau meio podre que um dia foi verde.

Por curiosidade, ou na esperança de algo sobrenatural, bati à porta. Duas mulheres a abriram, cabelos castanhos, longos e desgrenhados, vestidas com roupas amareladas (talvez tenham sido brancas algum dia). Abriram a porta, mas não perguntaram quem era ou o que queria: deixaram-na aberta e voltaram às suas atividades.

Perguntei da mulher de cabelos curtos. Uma delas disse: "é ela", apontando para a outra. "Ela se disfarça ao sair à rua". Olhei mais uma vez: não parecia em nada a mesma mulher que saiu do buraco. Voltei à ladeira de pedras. E fim.


* ainda não sei se haverá outros, mas como esse é o primeiro, fica com I

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